Teoria proprietal

TEORIA LIBERAL OU PROPRIETAL?[1]

Wallace dos Santos de Moraes[2]

 

Temos neste capítulo o objetivo de desenvolver a análise do SegundoTratado de John Locke comênfase na propriedade, apresentando nossas ponderações a partir da contextualização histórica e do debate bibliográfico jáfeitosemcapítulosanteriores. Desta forma, procuraremos provar e emcertamedidaratificar a importância das questões relacionadas com a propriedade, além de descrever a inovadora acepção do autor de que existe propriedade no estado de natureza. Buscaremos, também, esmiuçar os fundamentos dos direitos de propriedade na teoria lockeana e responder a algumas perguntasquenos saltaram aos olhosquando da elaboração desta pesquisa. Sãoelas: qual a amplitude da propriedade no pensamento de Locke na busca de seusobjetivos? Emquemedida está a propriedade relacionada comvida e liberdade, tendo emvistaqueporvezes figuram emúnicoconceito?

Fazendo umbreveresumosobre os tópicos discutidos no SegundoTratado, temos a seguintevisãopanorâmica: de início, o autor resume suarefutação às teses de Robert Filmer, desenvolvidas anteriormente no PrimeiroTratado e inseridas na disputasobre o príncipeterounãodireitosobre a propriedade de seussúditos; logoapós, defende a existência de liberdade e propriedade no estado de natureza; mais à frente, entende a violação da propriedadecomo uma declaração de guerra; depois, umcapítulointeirosobre a propriedade propriamente; logo, a descrição e justificação de uma sociedadepatriarcal, cujoobjetivo dos pais e dos tutores é garantir a propriedadepara os filhosquando chegarem à idade da razão; e, porúltimo, a descrição de uma sociedadecivil e política, cujaprincipalatribuição é a defesa da propriedadecomoinviolável.

O objetivo da obra de Locke é a construção de uma teoriapolíticasobredoispilares: organização da sociedadepolítica e garantia da ordem, tendo comocerne de ambas a discussãosobre os direitos de propriedade. Deste modo, todas as reflexõessobresuaobra passam necessariamente por uma abordagemacerca da propriedade, seuconceito protagônico.

A melhor metodologia para o entendimento da elaboraçãoteórica de Locke com a sua já famosa justificativa radical da propriedadeenquantoumdireito natural implica na perscrutação de suas considerações sobre o que convencionou chamar de estado de natureza.[3] Para além disso, o estudo sobre esse período pré-estatal descrito por Locke é fundamental para a compreensão da essência de suarefutação às tesesabsolutistas. Aprofundemos nossa análise.

A partir de deduções hipotéticas sobre um também suposto período pré-criação do Estado moderno, está a grandenovidade de suateoria; diferentemente de outrosautores de suaépoca, como Grotius, Pufendorf, Filmer e Hobbes, Locke advoga pela existência da propriedade no estado de natureza. O início da valorização extrema da propriedade está na forma de entendê-la comonatural, ou seja, elanão é uma criação do Estado, é inerente à existênciahumana. Porisso, deve ser preservada a todocusto. Para tanto, ele se baseia oraemexemplos da América recém-conquistada, oraemexemplos da Europa feudal[4], descrevendo comotodos os homens tinham totalliberdade, bemcomo possuíam suaspropriedades. A prioridade da propriedadecomrespeito à suarelaçãocom outras instituiçõessó é entendida a partir do estudo do estado de natureza lockeano. Se não concebermos esta engenharia, não compreenderemos o restante de seusargumentos.

A descrição da sua sociedadeantes do contrato é igualmenteimportantepara a defesa do enfraquecimento do poder do rei. Locke o faz amparado em dois caros conceitos: o de liberdade e o de igualdade. A partir desse alvo surge a pendência: como conseguira deslegitimar o poder real? Ele recorreu mais uma vez aos princípios de seu estado de natureza, de acordo com o qual existiria totalliberdade e igualdade para os homens de modo que ninguém tinha a necessidade de prestarobediência a outrem. Na seção IV do Segundo Tratado, ele reafirma a necessidade de regular as posses, respeitando os limites da lei da natureza, semsolicitarpermissãooudepender da vontade de qualqueroutrohomem. Logo, não existiam reis e, portanto, elesnão deveriam ser preservados, pois o que deve ser garantido emsuaconcepçãosão as instituiçõesnaturais: a vida, a liberdade e a propriedade. Com efeito, o objetivo de Locke de delimitar o poder do rei, que atacara, ou poderia atacar, a inviolabilidade da propriedade, era atingido.

Todavia, em aparente contradição com seus princípios, tendo em vista também que seumundonaturalnão era de cooperação, de solidariedade, de respeitomútuo, tampoucocoletivo, surgiria a necessidade das leis (coerção) e do poderpolítico (Estado), cujoprincipalobjetivo deve ser garantir a propriedade.

Feito esse breve introito, passemos a associar as teses lockeanas com a história do século XVII inglês.

3.1 TIPIFICAÇÃO DA SOCIEDADE

Sabemos que a terratinhaumgrandevalor e que as classesdirigentes eram detentoras de grandesextensões.[5] Sabemos também que a sociedade inglesa do século XVII era de tipo patriarcal.[6] Laslett (1975) descreveu ainda que as mulheres e os pobres – mesmos os chefes de família – não podiam ser considerados como indivíduos, pois foram englobados e subsumidos pelas personalidades dos pais e dos patrões. Notamos que os mendigos e assalariados eram a grande maioria da sociedade.[7]Porfim, seguindo os dizeres de Laslett, a Inglaterra era uma associação dos chefes de família, que tinham fortuna, sabiam ler e escrever – os grandesproprietários. A teoria de Locke nãosó não questiona nenhum desses aspectos como os ratifica. É importante ressaltar que o tema do direito de propriedade reforça a sociedade machista, patriarcal, desigual e excludente da Inglaterra do século XVII.

Em outras palavras, para reforçar o mesmo argumento, do ponto de vista teórico, a sociedade lockeana é formada porindivíduoscomdireitos e deveresdesiguais, talcomo na Inglaterra de suaépoca. Suaorganização pressupõe a existência de diferentesgrupos e o principalcritérioque delimita a posiçãosocial é a propriedade.

A primeiradistinção é entre o príncipe e os súditos. Os defensores do absolutismo justificavam que a Coroatinhaprevalênciasobre a propriedade dos súditos. Locke refuta esta tese. “Não discutirei agora se os príncipes estão isentos das leis do país, mas disto estou certo: devem sujeição às leis de Deus e da natureza” (capítulo XVI: 195). Quando Locke afirma que a realeza deve respeitar as leis divinas e naturais significa que devem respeitar o direito de propriedade privada que nesse caso foi elevado a direito natural e concomitantemente tratado como sagrado. Sendo assim, os reis devem preservar a propriedade, independentemente de estarsob as leis do país. Como nega a obediência às leis – diga-se de passagem: somente em favor da propriedade, Locke se apresenta como um revolucionário da propriedade privada.

Dentre os súditos, estavam os proprietáriosque podiam participar do poderpolítico; seusherdeiros, que ao alcançarem a maioridade estariam plenamenteaptos a dirigir os negócios dos paisou os seusprópriosnegócios; e, ainda, os nãoproprietáriosque estavam alijados de participar da sociedadepolítica. Estes se dividiam emdoistipos, os assalariados e os escravos, os primeiros eram livres, porém deviam obediência aos seussenhores, e os últimosnão eram livres, tendo os senhorespoderessobresuasvidas, pois foram tornadosprisioneirosem “guerrasjustas”. O senhortinha o direito de matá-lo, entretantonão o fez, logoele pode ser utilizado comoescravo[8]. Locke ignora solenemente os mendigos, que Laslett alertaquenãosãolevadosemconsideraçãosocialmente.

“Embora tenha ditoacima (capítulo 2) quetodos os homenssãoiguaispelanatureza, não pretendo suponham que entenda eutoda a espécie de igualdade. A idadeou a virtude podem atribuir ao homemjustaprecedência; a excelência dos dotes e o mérito colocarão outrosacima do nívelcomum; o nascimento pode submeter a alguns e alianças e benefícios a outros, paraprestarobediênciaàquelesque a merecem pelanatureza, gratidãoououtrosmotivos; contudo, tudoisto está de acordocom a igualdadeemque os homens vivem, relativamente à jurisdiçãooudomínio de uns sobre os outros, igualdade a queme referia comoconveniente ao assuntoemfoco, consistindo no igualdireito de todos os homens à liberdadenatural, sem sujeitar-se à vontadeou à autoridade de outrem.” (capítulo VI, 54)

No entanto, cabe ressaltarqueporvezes Locke não faz qualquerdistinçãoentre os homens. Neste caso, seuobjetivo era combater a tesesegundo a qualDeus teria dado a terrapara Adão e seusherdeiros e nãoparatoda a humanidadeigualmente. Isto é, ao longo da obra, emalgunsmomentosele evoca a igualdadeentre os homens e, emoutros, a naturalidade da desigualdade. Na primeiracircunstância, ele utiliza-se da igualdadeparacombater Filmer e, consequentemente, os direitos da realeza; contudo, no que concerne aos direitos dos súditos, seu pressuposto é o da desigualdade, pois os proprietários têm supremaciasobre os nãoproprietários. Sendo assim, temos claramente dividida a sociedadepelomenosemdoistipos, ou duas classes, cujadistinção está na posseounão de direitos de propriedade.

A sociedadepolítica de Locke também é delimitada pelaposse dos direitos de propriedadeprivada.[9] Neste sentido, ser proprietário era condição sine qua nonparaparticipar da vidapública. Locke diz poucoacerca de quem deveria ter o direito de voto, masseumutismo revela que elenão favorecia qualquermodificação no sistema vigente, ou seja, poucos privilegiados votavam; o que se tem clareza é que uma das condiçõesparaexercerseusdireitospolíticoserapossuirpropriedades. Esta premissa explica o valor atribuído à posse em Locke e seuemprego na justificaçãopara participação política, equiparando-a ao mérito, ao esforçoindividual. Ninguém poderá reclamarausência de participação pelofato de nãoterpropriedade, pois, se não a tem hoje, a culpaou é desta pessoaquenão quis trabalhar – tendo emvistaque a propriedade é fundada pelotrabalho -, ou de seusantepassadosquetambémnão quiseram, pois no estado de naturezatodos tinham condições de trabalhar e fazer de uma gleba uma propriedade.

Paralelamente, existem doispoderesdistintos, na concepção lockeana, quanto à manutenção da autoridade, amboscom a mesmapremissa. Sãoeles, o poderpatriarcal e o poderpolítico, baseados na obediência dos filhosemrelação aos pais e destes emrelação ao governo.

Ademais, Keith Tribe nosalertacomrazãoquando classifica a teoria do inglêscomoparte de umcontexto de uma sociedadepatriarcal, pois os filhos estão subordinados aos pais, não podendo tomardecisõessem o consentimento destes. No capítulo VI – Do PátrioPoder –, Locke nãosó discorre sobre o poder dos paissobreseusfilhos, que deve, paraefeito de negócios, ser restrito até a maioridade, mastambém de umdireito de herançasob algumas condições, emespecialrespeitar o governo e as leis; se issonão for feito, o filhonão deve terdireito ao uso da herança, da propriedade. Todo o capítulo tem porobjetivorebater as teses de Filmer, bemcomoratificar a importância da fortuna e da propriedade, meta de todofilho. Todavia, esta característicanão se resumia à relação pai-filho, pois se estendia aos criadosque se encontravam, talcomo os filhos, subordinados aos senhores.

Para Locke, o paiou o tutor têm todopodersobre o filhoatéqueele esteja apto ao plenoexercício da razão. Ressalva-se que o podersobre o filho é tãosomentetemporário, não atingindo a vida e a propriedade. Contudo, o poder dos senhoressobreseuscriadosnão se disse quando cessaria, na medidaemque Locke aceita os costumes de suaépoca.

 

3.2 NOTAS SOBRE PROPRIEDADE

O capítulohistórico ressaltou que na Inglaterra de Locke existiam terrascomuns, terrasprivadas e terrasreais. Também vimos o confrontoentre a Coroa e o Parlamentoemtorno da (in)violabilidade da propriedade. Observamos que a produção de matérias-primas industriais e alimentospara os grandesmercadosnacionais, fruto da expansão da economiamercantil, estimularam os grandesproprietários de terra a produzirem para o mercado. Concomitantemente, tivemos o cercamento de terrascom a expulsão dos camponeses do campo, que gerou umexército de desempregados. Elucidado estequadro de extremaimportânciapara o assunto da propriedade, nosrestasaber: qual a posiçãotomadapor Locke?

Locke, ao reconstruir a história da propriedade, preocupa-se emressaltartrêsaspectosemparticular, a saber, que se tratava de umdireitolegítimo; quenão causava danos a terceiros; e quetinha uma “funçãosocial”, pois beneficiava mais à humanidadeenquantopropriedadeprivada do quecomopropriedadecomum.

A seção 28 do capítulo V é bastanteelucidativapara entendermos as abordagens relativas à querela, pois os trechos mencionados abaixo reúnem pressupostos, conjecturas e teses de Locke que aparecem ora de maneirapatente, oralatente, masemconsonânciacom os acontecimentos da época. Ele separa direito de propriedadecomum do direito de propriedadeprivada[10], demonstra que a justificativanatural da propriedadeprivada é o trabalho, defendendo a apropriação, justifica a desobediênciacivilemfavor da propriedadeprivada e reafirma que o criadonão faz parte da sociedadecivil. Vejamos:

“Aqueleque se alimenta das bolotas colhidas debaixo de umcarvalhoou das maças apanhadas nas florestas, comtodacerteza delas se apropriou parasi. (…)  Estetrabalho estabeleceu uma distinçãoentre o comum e elas; juntou-lhes algomais do que fez a natureza, a mãecomum de todos, tornando-as assimdireitoprivado dele” (Cap. V: 28).

Emseguida, ele justifica o fenômenoque está acontecendo durantetodo o século XVII, qual seja, o cercamento dos campos, quetinhaoposição da Coroa, de setores das classesdirigentes e do próprio Filmer, dizendo ser desnecessário o consentimento de todos:

“Poderá alguémdizerquenão tivesse direito a essas bolotasou às maças de que se apropriou pornãoter tido o consentimento de todos os homensparaque se tornassem dele? Seria roubotomar de talmaneiraparasi o que pertencia a todosemcomum? Se semelhanteconsentimento fosse necessário, o homem morreria de fome, apesar da abundânciaqueDeuslhe deu. (…) E a tomada desta ou daquela partenão depende do consentimentoexpresso de todos os membros da coletividade”. (Cap. V: 28)

Mais à frente, vem a citaçãoclássica e polêmica, porémtambémmuitoobjetiva:

“A gramaque o meucavalo pastou, a turfaque o meucriado cortou, o minérioque extraí emqualquerlugaronde a ele tenho direitoemcomumcomoutros, tornam-se minhapropriedadesem adjudicação ou o consentimento de qualqueroutrapessoa. O trabalhoqueerameu, retirando-os do estadocomumemque se encontravam, fixou a minhapropriedadesobreeles”. (Cap. V: 28)

Esta passagem confirma e nos explicita umaspecto de fundamentalimportânciapara entendermos as teses de Locke, qual seja, suateoria se aplica somente aos proprietários. Elanão serve para os criados, pois o trabalho destes pertence ao seupatrão, e não a elespróprios. Como podemos entenderque o trabalhofeitopelomeuservonão é propriedade dele, masminha, sobretudo se a propriedade é resultado do trabalho? A chavepara compreendermos esta contenda está contida emdoisaspectos: 1º) a sociedadecivil e política de Locke é compostaapenasporproprietários; 2º) embora o servonãopertença ao rol dos proprietários, ele tem uma propriedadeemsi e pode aliená-la. [11] Neste sentido, o únicoenfoque da teoria da propriedadequerealmente se aplica aos não-proprietários é a da posse de seuprópriotrabalho. Segundo Laslett, em 1697 John Locke sugeriu que os filhos dos pobres deviam trabalharduranteparte do diaquando atingissem a idade de trêsanos (Laslett, 1975: 24).

De fato, a teoria da apropriação de Locke não se aplica para o trabalhador. Entretanto, ele é proprietário de suaprópriapessoa, pode e deve vendersuamão-de-obrapara os proprietários, sobpena de perecer, sobretudo num regime de propriedadeprivada. Esta assertiva se confirma de algumas maneiras, dentreelas, com a seguintereflexão: se a lei, como afirma Locke, foi feitapara a preservação da humanidade, está tambémmuitoclaroque a mesmaleinão foi feitapara a preservação dos nãoproprietários. Explicamos: se se entende que as pessoas vivem melhorcomo proprietárias, defender a preservação da humanidade e simultaneamente a propriedadeprivadaquesomente se concretiza paraalguns, enquanto a maioria tem quetrabalharpara os proprietáriosemfunção de suasnecessidades de subsistência, é uma contradição. Com a existência de umregime de propriedadeprivada, a garantia de preservação da humanidade fica restringida, pois os não-proprietários precisam vendersua “propriedade” para os proprietários. Comefeito, fazer da terra uma mercadoria é uma medidacontrária à preservação da humanidade, porquantotodos precisam terliberdade de acesso à terrapara poderem suprirsuasubsistência. Desta forma, a preservação, à qual a lei se refere, deve serentendidapara os proprietários e nãoparatodos.

A fortepreocupação do autorcom a positividade do trabalho vincula-se comaspectos da situaçãosocial daquele momento. Porexemplo, o grande e crescentenúmero de mendigos na Inglaterra se transformava em uma constanteameaça à propriedade. Ademais, deve-se considerar duas questões: 1ª) o fato de umtrabalhadoremterrascomunsnecessitar de trabalharapenas às tardesparasuprirsuasubsistência[12]; 2ª) uma justificativamoralpara os primeirospassos da economiacapitalistaque necessitava do emprego de muitas horas de trabalho.

Comefeito, suateoria da propriedade caracteriza-se pelotom marcadamente individualistacomrelação à propriedade e à produção. Postoque a propriedade é fruto do trabalho de cadaum, logo a propriedade e a produçãosãomedidaspelotrabalhoindividual. E, ainda, comosuapropriedade pode seralienadacom o advento do dinheiro, só podemos entenderque Locke está pensando empropriedadeprivada; se fosse o contrário, ele afirmaria que o resultado do trabalhoempregado na propriedadeeracoletivo.

Além do mais, a doutrina de Locke baseia-se na premissa de que a existência de terras férteis e abundantes nãobastaparalevar a humanidade à maximização do seubem-estar, que é sinônimo de progresso ou prosperidade, no pensamento liberal. Paraisso, são necessárias duas instituiçõescentrais: o trabalho e a propriedadeprivada. Um dos exemplosquesustenta esta conjectura encontra-se no fato de na América haverterras férteis e abundantes, mas, pelafalta do emprego do trabalho, umrei de lá “se alimenta, mora e veste-se piorqueumtrabalhadorjornaleiro na Inglaterra” (capítulo V, 41).

O pressuposto de Locke explícito consubstancia-se na ideia de que a propriedadeprivada dá mais à humanidade do que as terrascomuns. Assim, a positividade daquela se justifica emprol do bem-estar de todos, rebatendo as críticas de que geraria ummalefíciopara os não-proprietários. Este entrará na história como um dos postulados centrais do liberalismo.

“Ao que, permitam-me juntarqueaquelequetomaposse da terrapelotrabalhonão diminui masaumenta as reservascomuns da humanidade. As provisõesque servem para o sustento da vidahumana produzidas emumacre de terra fechada e cultivada – falando mui conservadoramente – sãodezvezesmais do que pode produzirumacre de terreno de igualfertilidadeaberto e emcomum. Portanto, aquelequecercaumpedaço de terra e tem maiorvolume de conveniências da vida retirado de dezanos do quepoderiater de cem abandonados à natureza, pode dizer-se verdadeiramente que dá noventa acres aos homens.” (Cap. V, seção 37)

Ao produzircemvezesmais, esteresultado estaria à disposição de toda a humanidade, nãosomente do proprietário. Emque pese à existência de proprietários e não-proprietários, os últimosnão são prejudicados com a instituição da propriedadeprivada. O fato de serem coagidos, parasuasobrevivência, a trabalharparaaqueles, bem como a nãodistribuiçãoigualitária dos lucros para todos os trabalhadores é ignorado por Locke. Jáque, escreve para os primeiros, estas consideraçõesnão têm relevânciaparasuaconstruçãoteórica.

Podemos chegaragora a algumas conclusõesquanto à relação da propriedadecom o trabalho. Locke justifica, de início, a propriedadesomentepela possibilidade de seuuso, através do emprego do trabalho e tão-só, desdeque deixe terras, tão boas quanto a utilizada[13], para outros. Ele está defendendo que ninguém saiu prejudicado com a apropriação feita, através do trabalho, por alguns homens, das terras que antes eram comuns. Entretanto, é salutar realçar que todas as alternativas de Locke neste sentido estão indicadas com o verbo no past tense (no passado verbal), isto é, mesmoquenão houvesse a introdução do dinheiro, as justificativas da propriedade na forma como colocada acimanão se aplicariam nostempos de Locke.

Uma das grandesquestões da argumentação do grande proprietário inglês sobre a propriedade consiste emque o princípio do trabalho se aplica nãoapenas aos frutos da terra, mastambém à própriaterra.[14] Com a criação do dinheiro, percebemos que estas teses não mais se justificam; não porque Locke se contradiga, como alguns interpretaram, ou porque nunca fora cogitada, como defendido por Macpherson. O ponto nodal é que todas as atribuições ligadas à função social e trabalho foram consideradas no passado; portanto, não diziam respeito ao presente.[15]

Devemos entenderque existe uma divisão da argumentação de Locke no SegundoTratado, que delimita doisperíodosdistintos: o primeiro relaciona-se com o passado, no qual imperava a igualdade de condições, a liberdade, a criação da propriedadepelotrabalho; e o segundo, com o mundoatual, onde a transformação da propriedadeemmercadoria gerou outras necessidadesque se relacionam comleis, ordem e sociedadepolítica.

3.3 O ADVENTO DO DINHEIRO

A discussãosobre o advento do dinheiro na interpretação da obra lockeana tem se mostrado bastantecontroversa e é geralmente dirigida para a intencionalidade de Locke emdefender a apropriação ilimitada ounão. Laslett interpretou que Locke desaponta ao nãofazer nenhuma previsãoespecíficacontra as consequências óbvias da permissão de ilimitada acumulação de dinheiro. Entretanto, Laslett não problematiza a questão, isentando Locke de suaspalavras, ao partir da premissa da ingenuidade do autor. Poroutrolado, Macpherson entende que Locke justifica as desigualdades de propriedade a partir da criação do dinheiro, relacionando-as com a cobiça e ambição, além da apropriação ilimitada já referida. A principaltese de Macpherson materializa-se na perspectiva de que Locke via o dinheironãosócomomeio de troca, mascomocapitalembusca da acumulação ilimitada, que justificava as desigualdades. Tully, porsuavez, escreve emcontrário às teses de Macpherson, defendendo que a terra é feitaempropriedade condicionada peloseuuso, que consequentemente geraria umresultadopositivo de acordocom o qualmaisterras seriam deixadas para os outros. Feitoestebreveresgateteórico, passemos às nossas considerações.

O advento do dinheiro é o grandedivisor de águas da teoria de Locke. A partir deste acontecimento, o autordeixa de escrever no past tenseparaabordar o presente. A posse de propriedades fundadas pelotrabalho e o fato de os homens terem tantoquanto possam empregar o seu trabalho resultando em uma igualdade de condições perdem-se e ficam apenas na memória. Comotudoisto acontece? Com a criação do Estado? Não. Simplesmente pela invenção do dinheiro.

“Ouso afirmarcorajosamente o seguinte: – a mesmaregra de propriedade, isto é, quetodohomem deve tertantoquanto possa utilizar, valeria ainda no mundosemprejudicarninguém, desdeque exista terrabastantepara o dobro dos habitantes, se a invenção do dinheiro e o tácitoacordo dos homens, atribuindo umvalor à terra, não tivessem introduzido – porconsentimento – maioresposses e o direito a elas”.  (Locke: capítulo V, 36)

Perguntamos a Locke: não seria melhor permanecerem os homens naquelas condiçõesemquetodos podiam tersuapropriedade, sempossuirparaalém de suas possibilidades e necessidades? Locke responde quenão, pois o surgimento do dinheiro aparece parasuprirnecessidades humanas e favorecer aos quemais trabalham. Logo, está incluído nesta suposição o argumento do mérito e mais uma vez as necessidadesnaturais do homem. Assim, percebemos que o surgimento do dinheiro[16] é apontado por Locke de formabastantepositiva, pois impedia queaqueleque dedicava muitas horas de seutempo ao trabalho, consequentemente produzindo mais do que necessitava consumir, pudesse, impedindo o perecimento de suaprodução, trocá-la pormetaispreciososoudinheiro; destarte “poderiaacumularqualquerquantidadeque quisesse destes objetosduradouros; não se achando o extremo dos limites da suajustapropriedade na extensão do que possuía, mas no perecimento de tudoquanto fosse inútil a ela” (capítulo VI, 46).

Neste sentido, o apropriador e o acumuladorsãohomens de bem, grandestrabalhadoresque fazem umenormebenefício à humanidade, dentre os quais, impedirque os frutos pereçam. Ampliando a valorização do dinheiropara a sociedade, Locke assegura que o seusurgimento possibilita àquelesque trabalham ampliarem suasposses, entretanto, melhorqueisso, possibilita às pessoas terem vontade de produzirmais. Esta preocupação está relacionada com os problemas advindos da crise de produçãoagrícolaque a Inglaterra sofreu no século XVI e emparte do XVII, e/oucom a defesa da apropriação ilimitada, tão proferida por Macpherson que por consequência transformar-se-á em um dos aspectos centrais da teoria liberal.

A argumentação de Locke leva o leitor a refletirsobre as condiçõesatuais de suaépoca, na qual existem poucosproprietários e muitos não-proprietários, e concluirque os poucosproprietários merecem sê-lo, pois foram os quemais trabalharam, enquanto os outrosounão trabalharam o suficiente, ou fizerem a opçãoespontânea de trocarsuaspropriedadespordinheiro. Istonosleva a crerquetoda a teoria da propriedade de Locke está baseada na inteligência, na capacidade de emprego do trabalho, enfim, no mérito, mas também na valorização da desigualdade social como extremamente benéfica para todos.

Comefeito, de acordocomnossaleitura, Tully e Laslett cometem umerrograve ao não conceberem a importância do advento do dinheiropara o constructoteórico de Locke, enquanto Gough e Macpherson perceberam e atribuíram acertadamente a centralidade deste evento na doutrina lockeana.

Umoutroaspecto de controvérsia trabalhado na discussão bibliográfica giraemtorno da posição de Locke referente à cobiça e à ambição. Para Tully, eleeracontra ambas e, de acordocom Macpherson, a favor. Na nossainterpretação, percebemos que Locke só citou estestermos duas vezes, uma no sentidopositivo[17] e outra no negativo[18]. Cadaintérprete se agarrou a uma das citações. O fato é que, de maneirageral ao longo de suaobra, Locke exalta os termosouseussinônimoscomopositivos, pois implicam no aumento da produção e, consequentemente, no progresso, alvosperenes do constructointelectual lockeano.

3.4 LEI E COERÇÃO

 Vimos que no século XVII eram muitas as transformações em curso em toda a Europa e, em particular, na Inglaterra.[19] Dentre elas, está a mudança do próprio perfil constitucional inglês. Uma das causas da revolução está em que os Stuarts fogem ao ideal de consenso com os Lordes e com os Comuns, reivindicando o direito divino dos reis, com vistas a aumentar os impostos sobre a propriedade. Além disso, os Stuarts optam pela instauração das Cortes de Tutela e por multar quem cercasse as terras comunais. Todos estes aspectos ou violavam a propriedade dos súditos ou eram um entrave para a transformação da propriedade comum em propriedade privada. Uma revolução sempre marca as mentes das gerações que dela participam e das posteriores. Locke não foge à regra e é com estas marcas que escreve o Segundo Tratado de Governo. Veremos que sua defesa da ordem e da lei vai exatamente de encontro ao que fora defendido pelos Stuarts. E por que não dizer que os escritos de Locke também foram contra as propostas dos diggers ou levellers autênticos[20]?

Locke, a suamaneira, propõe uma ordemque vise o respeito ao direito de propriedade privada, à liberdade dos proprietários, ao progresso capitalista, e entenda o Parlamento, formado apenas pelos maiores donos de terras, comolegítimo representante do povo, restringindo o poder absolutista da monarquia.

Desta forma, se a sociedadepintadapor Locke no estado de naturezaera permeada porconflitosque geravam insegurança na cobertura da “justa” propriedade e, porisso, os homens deixam-na. Com a criação do dinheiro, as extremas desigualdades empropriedades e poder passam a ter que ser afiançadas comleis e coerção. Isto é fato. Mas estas desigualdades deveriam ser garantidas pelogovernoarbitrário e absoluto do rei? Segundo Locke, não, embora o rei fosse umgrande possuidor de terras. A soluçãoerapassar o poderpara as mãos da maioria da população, os assalariados e mendigos? Certamente, tambémnão. Pois se o principal objetivoprimeiro do governo é assegurar a propriedade, o podernão pode estar nas mãos de apenasumproprietário, o rei, que pode querer apropriar-se das propriedades dos demais, como o fez por algumas vezes. Tampouco, o poder pode ficar nas mãos do povo “aproprietário”, quenão tem nenhuma vantagememgarantir a propriedade alheia jáque simplesmente não a possui. Poristo, cria-se e justifica-se umpoderpolítico restrito aos proprietários, mascom possibilidade de alternância de pessoas na ocupação dos cargos, embora tivessem um objetivocomum: avalizar os direitos de propriedadeprivada. Pari passu, os governantes precisam elaborarregras,discursos e formas de repressão paralegitimarsuasaçõesemdefesa de seusobjetivos. É neste contextoque se inserem as leis e a coerção, que em seu conjunto são também conhecidas pelo nome de ordem.

Como resultado dessas diversas considerações, Locke define o verdadeiroobjetivo do poderpolítico, abarcando a necessidade das leis e, consequentemente, de suaspuniçõescomvistas à defesa da propriedade:

“Considero, portanto, poderpolítico o direito de fazerleiscompena de morte e, consequentemente, todas as penalidadesmenorespararegular e preservar a propriedade, e de empregar a força da comunidade na execução de taisleis e na defesa da comunidade de danoexterior; e tudoissotão-sóemprol do bempúblico” (cap. I: 3).

Se o objetivo de Locke era estabelecer a ordem, suasociedade necessitava de coerção, sobretudo, sendo ela amplamente desigual. A pedra de toque de seupensamento foi endossar a punição pautada nos “representantes” do povo, no Parlamento e, paralelamente, colocar-se em contrário à repressão da realeza, consubstanciada na concentração de poder nas mãos do rei. O poder devia ser parcialmente descentralizado, sobargumentação de que a centralização viabilizava a arbitrariedade do rei; entretanto, as penalidades tinham quecontinuar existindo, comvistas a abonar os direitos de propriedade. O problema para Locke, portanto, não era a repressão per se, mas quem a aplicava e com qual objetivo. Diferente do que era estabelecido pelo poder absolutista, propunha que as penas previstas emleis, elaboradas pelopoder legislativo – habitado pelos grandes proprietários, donos do poder econômico – tinham que ser incontestavelmente respeitadas com uma única ressalva: elas deveriam assegurar o direito de propriedade.

Nesta perspectiva, qual a argumentaçãoforteparalegitimar a elaboração das leis? Elas, na visão de Locke, não podem ser escolhidas aleatoriamente, a bel prazer do legislador, pois devem apenasratificar as leis da natureza e os desígnios de Deus, nosquais o direito de propriedade está incluso, segundo sua interpretação.[21]

Comrelação à dissolução do poderpolítico, o muito propalado direito de resistência, Locke é claro ao defenderque se o poderlegislativo e/ou o príncipenão cumprirem seudever, que é garantir os direitos de propriedade, podem e devem ser dissolvidos. Vejamos:

“Há outramaneira de dissolver-se o governoque consiste em agirem o legislativoou o príncipe contrariamente ao encargoque receberam. Primeiro, o legislativo age contra o encargoque a ele se confiou quandotentainvadir a propriedade do súdito e tornar-se a simesmoou a qualquerparte da comunidadesenhorouárbitro da vida, liberdadeoufortuna do povo” (capítulo XIX, 221).

Comefeito, Locke, discorrendo sobre o papel daqueles que devem dirigir o país,  sustentaqueninguém tem o poder de contestarqualquerprerrogativaemrelação à propriedade, sobretudo, se for comobjetivo de limitá-la a partir da institucionalização do Estado:

“Não sendo escrita a lei de natureza, não se podendo encontrá-la emoutroqualquerlugarsenão no espírito dos homens, os que a citarem erroneamente ou a aplicarem malporpaixãoouinteresse, não podem tão facilmente serconvencidos do erro se não existe juiz autorizado; e assim sendo, não se presta como devia paradeterminar os direitos e limitar as propriedades dos quesobela vivem (…)” (Cap. XI, seção 136).

3.5 A PROPRIEDADE PRIVADA ACIMA DA VIDA

Os “direitos de conquista” propostos por Locke também revelam uma eloquente importância da propriedadepara o autor, talcomo Gough (1980) afirmara, na medidaemque o conquistador, seja porguerrajustaouinjusta, aindaque tenha direitosobre a vida do conquistado, não o tem sobresuasposses.

“O poderque o conquistador consegue sobre os que vence emguerrajusta é perfeitamentedespótico. Possui poderabsolutosobre a vida de quantos, pondo-se emestado de guerra, a ela perdera o direito, masnão tem, porisso, direito e título às posses deles”  (capítulo XVI, 180).

O capítulo XVII nãoapenas revela esta argumentação, mas, paraalém disso, defende a necessidade de mataraqueleque transgredir a propriedade ou o seu direito. Também manifesta o quanto o respeito à propriedade está superior ao respeito à vida. Em outras passagens, Locke já havia apresentado esta interpretação, porémaquiela está maisobjetiva. Ele antepara que, o conquistadornão pode tomar a propriedade dos filhos – quenão participaram da guerra – visando à preservação de todos os homens, mas, pari passu, pode tomar a vida dos paisque participaram.

“Como os extravios do painão constituem faltas dos filhos, podendo serestesracionais e pacíficos, apesar da brutalidade e injustiça do pai, este, pelosextravios e violência, pode perder o direito à vida, semenvolver os filhos no crimeou na destruição. Os bens dele, que a natureza, desejosa da preservação de todos os homenstantoquantopossível, ordenou pertencerem aos filhos, paraqueestesnão viessem a perecer, continuou ainda a pertencer aos filhos”. (capítulo XVI, 182)

Fazemos agora uma indagaçãoóbvia, se o objetivo é a preservação da humanidade, como afirmou Locke, porquepriorizarcomointocável a propriedade privada e não a própriavida? Contrapondo uma possívelresposta: se a propriedadeprivada é tãoimportantepara a vida, como vivem os quenãosãoproprietários, amplamaioria na Inglaterra naquele momento?

Há aindamaisumdado a considerardiante do paroxismo da defesa dos bens vistos acima do direito à vida: a necessidade de mataraquelequeatentacontra a propriedade. Locke descreve:

“[É] legítimomatarumladrãoquenãonos fez malnem manifestou qualquerdesígniocontra a nossavidamais do que, peloemprego da força, apoderar-se de nós de sorte arrebatar-nos dinheiroou o quemaislhe convier; porque fazendo uso da forçaquandonão tem o direito de se apoderar de nós, seja qual for a pretensãoque o anime, não temos motivoparasuporqueaquelequenostira a liberdadenãonos arrebata-se tudooumais, logoquenos tivesse emseupoder. Portanto, é-nos legítimo tratá-lo comoquem se colocou emestado de guerracontranós, isto é, matá-lo se pudermos, porquanto a tanto se arrisca ele ao introduzirumestado de guerra no qualfiguracomoagressor.” (capítulo III: 18)

A melhormaneirapara se entender a teoria da conquista e a supremacia da propriedade é que Locke equipara o atentadocontra os bens, isto é, o roubo, comousemviolência, como uma declaração de guerra. Esta é a justificativapara a necessidade de matar o ladrão.

Segundo o princípio de Locke, combase nas leis, aquelequenostiradinheiro ataca diretamentenossaliberdade deve ser assassinado. “Assim a umladrão, a quenão posso fazermalsenão apelando para a leipor ter-me roubado tudoquanto possuo, posso matarquandome ataca para roubar-me tão-só o cavaloou o casaco; porque a lei, feitapara a minhapreservação, quandonão pode interpor-se para garantir-me a vidacontra a forçaatual, vidaque, se perdida, não é suscetível de reparação, permite-me a defesaprópria e o direito de guerra, a liberdade de matar o agressor” (capítulo III: 19).

Contudo, o princípio de maior valoração da propriedade em comparação com a vida também é dirigido para o ladrão. Ou seja, aindaquepercasuavida, o ladrãonão perderá suapropriedade, garantida aos seus herdeiros.

“Emboraeu possa matarumladrãoquemeassalta na estrada, não tenho o direito de tirar-lhe o dinheiro e deixá-lo partir, o que parece menos; tal seria roubo de minhaparte. A força de que usou e o estado de guerraemque se colocou fizeram-no perder o direito à vida, masnãome deu qualquerdireitosobre os bens dele. Assim sendo, o direito de conquista se estende somente à vida dos que tomaram parte na guerra e não às suaspropriedades, massomenteparacompensarpordanos causados e despesas de guerra, e, mesmoassim, reservando-se o direito da mulher e dos filhosinocentes” (capítulo XVI, 182).

Porfim, o seguintetrecho da obra de Locke nos traz várias revelações, condensando algunsaspectosdesenvolvidos ao longo da obra, a saber: 1) a inviolabilidade da propriedadefrente a qualquertipo de governo; 2) a necessidade das leispararegular o novotipo de propriedadeque surge neste período; e, porúltimo, 3) a surpreendenterevelação de que a inviolabilidade dos direitos de propriedadeprivada está acima da inviolabilidade do direito à vida. Simultaneamente, constatamos que Locke não é contra a arbitrariedadeper se, o poderabsoluto de algunshomenssobreoutros. Vejamos:

“Sendo o governo, sejam quais forem as mãosemque estiver instituído sob esta condição e paraestefim, paraque os homens possam terpropriedade e garanti-la, o príncipeou o senado, nãoobstante tenha poderparapromulgarleis no sentido de regular a propriedadeentre os súditos, uns emrelação aos outros, entretantonunca poderá ter o poder de tomarparasi, no todoouemparte, a propriedade do súdito, semconsentimento dele; porquantotal seria, comefeito, deixá-lo sempropriedade. E paraque vejamos atémesmo o poderabsoluto, ondenecessário, não é arbitrárioporserabsoluto, massim limitado porissomesmo e restrito aos objetivosque exigem seja absolutoemcertoscasos, não precisamos olharmaisalém do que a práticacomum da disciplinamarcial; pois a preservação do exército, e comele a de todacomunidade, exigem obediênciaabsoluta ao comando de qualqueroficialsuperior, e importa merecidamente emmortedesobedecer ao maisperigosoou desarrazoado deles oucomelediscutir; entretanto, vemos quenem o sargento, quepoderiadarordem a umsoldadopara postar-se diante da boca de umcanhãoouem uma brechaondecomquasetodacerteza perecerá, pode ordenar ao soldadoquelhedêum pêni do dinheiroque tem; nem o general, que pode condená-lo a morteporabandono do postoouporquenão obedeça as ordensmais desesperadas, tem poderes, apesar do domínioabsoluto de vidaoumorte, paradispor da menorporção da propriedade do subordinadoou apoderar-se da menorparcela de seusbens, podendo, entretanto, ordenar-lhe tudo o que quiser, enforcando-o pelamaislevedesobediência. Talobediênciacega é necessária ao fimpara o qual o comandante tem o poder, isto é, a preservação do resto; mas dispor-lhe dos bensnada tem a vercomisso.” (capítuloXI, 139)

A passagem acima é deveras elucidativa para chegarmos ao pontocrucialpara e compreendermos da melhor forma possível o “Segundo Tratado de Governo” comoumtodo e suateoria da propriedadeemparticular. Trata-se da discussãoacerca do significado de propriedadepara Locke.

Acabamos de testemunhar como a propriedade deve ter prevalência sobre a vida e a liberdade, de acordo com Locke, entretanto alguns teóricos ainda insistem em realizar interpretações falsificadas do pensamento do autor, que estabelece as bases da teoria liberal. Por consequência, é necessário ampliarmos nossa problematização. Façamos um exercício crítico filosófico.

Poder-se-ia argumentarque o autor, ao colocar a defesa da propriedadecomoobjetivoprimeiro do governo, está entendendo-a emseusentidoamplo (bens, vida e liberdade), como afirmou Tully (1993). A partir desta hipótese[22], estará de qualquerformainclusa a defesa da propriedade no seusentido restrito, deste modo o objetivoprimeiro do governonão é modificado comrelação às posses, mas ampliado com referência a outras instituições. Poder-se-ia, ainda, insistirque, nas passagens nas quais Locke cita a propriedade, contundentemente, estaria defendendo a vida e a liberdade. Contudo cabe-nos inquirirmais, comvistas a entender o verdadeiropapelque a propriedade ocupa nesta doutrina. Quando colocadas emsituaçõesconcorrentes, vida, liberdade e possesqual terá prioridade para o seu pensamento? Reflitamos.

Porque estaria Locke defendendo vigorosamente o direito à vida se nenhumteórico de relevo, político, rei, qualqueropositoroualiado advogavam o contrário? Elepoderiaapenasestar confirmando suaposiçãocomoumhumanista. Todavia, já temos dados suficientes para desacreditar dessa ideia, sobretudo quando vimos argumentar com toda força em favor da pena de morte para não proprietários em favor dos bens, por várias vezes ao longo do texto.

Na mesma nuança, por que Locke defenderia contundentemente a liberdade? Poder-se-ia dizerqueele a defendera relacionada a ideia de livre expressão e de cultoreligioso[23], conquanto deve-se ressaltar, para aqueles que seguem Cristo[24]. No capítulo IV – da escravidão -, fica claro que liberdade para Locke não é poder fazer o que se quiser, à hora que se quiser, sem ser refreado por leis quaisquer, tal como propõe Robert Filmer, seu contemporâneo e opositor direto.[25]  Para ele, liberdade é viver sobre regras feitas pelo poder legislativo. Nesse sentido, ela só existe sob leis que têm por objetivo primeiro a defesa da propriedade. Ademais, no Second Treatise, Locke justifica e defende a existência de escravos.[26] Tratava-se, com efeito, da defesa de uma concepção de liberdade deveras limitada e exclusiva para seus iguais, proprietários.

Destarte, apenas a defesa da propriedade,enquantoumdireito,não apresentava qualquerlimitação, exceto pelo fato de queelanão poderia sercoletiva, tampouco, comum, masprivada, comdireito ao uso e ao abuso. A vida podia serretirada de qualquerpessoa, casoela invadisse a propriedadeprivada de alguém, e a liberdade se referia fundamentalmente ao direitoindividual de usufruto, alienação e destruição da propriedade.

Fazendo a escolha, num primeiro momento, emunificar no mesmoconceito de propriedade:vida, liberdade e bens; Locke busca ser prudente e aceito socialmente, pois se ele optasse por dizer objetivamente que o direito à propriedade estaria acima dos direitos à vida e à liberdade suas teses seriam mais dificilmente aceitas. Agora podemos entender porque da escolha em às vezes apresentar o conceito de propriedade amplo, com a inclusão da vida e da liberdade junto com os bens. Trata-se de uma tentativa de ludibriar o leitor que é amplamente desmascarada quando analisamos ao longo de toda a obra as limitações aos outros direitos supracitados, principalmente quando postos em concorrência. Ademais, concluímos que não se trataapenas de uma junção de palavras,oudireitoscominteressessemelhantes; paraalém disso, portodoexposto, trata-se de dizerque a defesa da propriedade consubstancia-se como prioridade máxima para todo governo em detrimento inclusive dos direitos à vida e à liberdade.

A teoria lockeana sobrepropriedade pode ser resumida em duas teses expostas no nossotrabalho, a saber: 1) de Tully e Laslett, que viam a defesa da propriedadefeitapor Locke como uma defesafrente à arbitrariedade do poderreal; e 2) elaborada por Macpherson e Gough, que representava a explícitajustificação e defesa da propriedadeprivada com suas justificativas para a nascente sociedade capitalista/dos proprietários.

Pelo que podemos perceber a teoria da propriedade de Locke impetra as seguintes características: 1) de sagrado: porque advém de Deus; 2) de intrínseco à humanidade: pois vista como um direito natural; 3) como propulsora do progresso, do desenvolvimento e da produção de riqueza e felicidade humana: como gênese do utilitarismo; 4) de autoritário: pois quando concorrentes posto acima da vida e da liberdade.

 

 



[1] Este artigo é parte de livro em elaboração pelo autor acerca da teoria política de J. Locke. Portanto, esse material ainda sofrerá revisões.

[2] Prof. do Departamento de Ciência Política e do PPGHC da UFRJ.

[3] De acordo com suas inferências, estágio anterior a existência do Estado para regular a vida social.

[4]Quando Locke assevera que no estado de naturezaninguém podia destruirqualquerpessoaemsuaposse, nos conduz claramente ao contexto delineado pelosautores debatidos no capítulo II, representando o feudalismoeuropeu, com o sistema de vassalagem. Poroutrolado, em outras passagens, ele cita a América selvagem, como no capítulo V. Então, a polêmicaentre Gough e Tully sobre o lugaronde Locke teria se baseadoparaelaborarsuasteses demonstra queambos têm argumentosparadefendersuasconjecturas. De todomodo, a deduçãoracional de Locke o possibilitava visualizar os exemplos e construirsuashipótesessemcompromissocomeles. Assim sendo, o maisprovável é que tenha se baseadoemambos, semmaioresobrigações empíricas.

[5] Ver Hill (2001), Morton (1970), Marx (1984), Thompson (1987).

[6] Ver Laslett (1975) e Hill (1987).

[7] Ver Tribe (1978).

[8]Nostermos dos capítulos VI e VII do SegundoTratado.

[9] Indicamos privada, poismesmoque se obtivesse direitossobre a propriedadecomum, porcostumeouconvenção, não se podia votar. Eranecessário o título de propriedadeprivada.

[10] Temos aquioutroaspecto a salientar: se Locke entende a propriedadecomobemoudireito. Se levarmos emconsideraçãoque o direito de propriedade advém do Estado, então a propriedadepara Locke não é umdireito; porém, se entendemos queela é fruto dos direitosnaturais e das leis da naturezamesmoqueabstratamente, ela é umdireito. Paraalém disto, o Estado na concepção de Locke somente deve ratificar estas leis da natureza, concebendo o direitoou o título à propriedade, como descrito na seção 51. Então, partimos do princípio de que a propriedadepara Locke configura-se emumdireito.

[11]Segundo Locke: “embora a terra e todas as criaturasinferiores sejam comuns a todos os homens, cadahomem tem uma propriedadeemsuaprópriapessoa; a esta ninguém tem qualquerdireito, senãoelemesmo. O trabalho do seucorpo e a obra das suasmãos, pode dizer-se, são propriamente dele” (Cap. V: 27).

[12]Ver Morton (1970)

[13] Até este ponto de sua teoria, poderia assemelhar-se a um socialista; Tully demonstrou a existência dos Lockean socialist não foi à toa.

[14] “Toda a terraque o homemlavra, planta e aperfeiçoa, e de cujoproduto pode fazeruso, será suapropriedade. Através de seutrabalhoele se apropria de uma parcela da propriedadeque é comum a todos” (§ 32).

[15] Uma polêmicaentre Tully e Macpherson versava sobre o tipo de propriedade concebido por Locke. Podemos afiançar que a propriedadecomfunçãosocial percebida por Tully só existiu no passadopara Locke. A criação do dinheiro e sua possibilidade de acúmulo fazem da propriedade lockeana, privada – talcomo visualizada por Macpherson.

[16] “É evidenteque os homens concordaram com a possedesigual e desproporcionada da terra, tendo descoberto, medianteconsentimentotácito e voluntário, a maneira de umhomempossuir licitamente maisterra do queaquelecujoproduto pode utilizar, recebendo emtroca, peloexcesso, ouro e prataque podem guardarsemcausardanos a terceiros, uma vezqueestesmetaisnão se deteriorem nem se estragam nas mãos de quem os possui.” (Locke: capítulo VI, 50)

[17] “Não tinham sentidonem a opressão do domíniotirânico, nem a maneira da época, as possesou o modo de viver, que proporcionava poucosmotivospara a cobiçaouambição, razãopara temê-lo oucontraele prevenir-se; e, porconseguinte, não será de admirarque se tivessem entreguem a talforma de governoquenãosóera, conforme disse, muitoevidente e simples, mastambémquemelhor convinha ao estadopresente e condiçãoemque se encontravam, a qual exigia mais a defesacontrainvasões e malefícios do estrangeiro do que multiplicidade das leis. A igualdade da maneira de viversimples e pobre, limitando os desejos aos confinsestritos da pequenapropriedade de cadaum, originava poucas controvérsias, e desta maneiranão havia necessidade de muitas leispara decidi-las ou de muitosfuncionáriosparasuperintender os processosouacompanhar a execuçãojustiça, se havia poucas transgressõesouofensores” (capítulo VIII, 107).

[18] Na seção 111, Locke se mostra contra a ambição: “antes que a vã ambição e o amor sceleratus habendi, a maldosaconcupiscência, tivesse corrompido o espírito dos homensemumequívoco de verdadeiropoder e honra”.

[19] Ver Trevor-Roper (1972).

[20]Além de outrosgrupospopularesque defendiam o cultivocoletivo das terras e a proibição do comércio delas. Ver Hill (1992).

[21]Para Locke, as leissãofeitas e “as regras estabelecidas como guardiãs e defesas da propriedade de todos os membros da sociedade, paralimitar o poder e moderar o domínio de todas as partes e membros da sociedade” (§ 222). De acordocom a interpretação de Gough, o principalperigo a reclamarproteção, talcomo pareceu àquele e a seuscontemporâneos, era a interferência na liberdade e na propriedade dos cidadãosporgovernoscompretensões a poderarbitrário, o que pode serexplicaçãosuficientepara o fato de Locke haversempretratadomais dos direitosque dos deveres envolvidos na posse de propriedade (Gough, 1980: 176).

[22] A primeiravezemque Locke utilizou-se do conceito de propriedadeamplo foi no capítulo VII, seção 87. Atéentão o uso do conceito foi apenas restrito.

[23] Esta argumentação da defesa da liberdadereligiosa está atrelada à história de perseguição sofrida na Europa comoumtodo e na Inglaterra emparticular, movimentoque se intensifica com a Reforma e a Contra-Reforma.

[24] Em outro texto de Locke, denominado, “Carta Acerca da Tolerânciapodemos apreender que o autor estabelece uma concepção de “liberdade” religiosa bastante limitada. Segundo ele, somente os cristãos devem possuí-la. Além desse preconceito com relação a todas as demais religiões, o autor chega ao desatino de determinar que os ateusnão devem terliberdade, seja religiosa, seja de expressão, impedindo-os de assumiremsuasconvicçõespessoais.

[25] Hill descreve o que Filmer disse aos agitadoresem Putney: “A liberdade e a propriedadesãotão contrárias uma a outraquanto o fogo à água”. (Hill, 2001: 230/1).

[26] “Na década de 1670 ele (Locke) tinha terras que rendiam £ 240 por ano, investimentos substanciais no comércio de sedas, no tráfico de escravos, e em outros empreendimentos ultramarinos, como também dinheiro que emprestava a curto prazo e em hipotecas. Em 1694 está pedindo conselhos sobre como investir as £1.500 que tinha ‘jazendo mortas’. Sua fortuna, ao morrer, montava a cerca de £20.000. Maurice Cranston, John Locke, A biography (1957), p. 114-5, 448, 475 (in Macpherson, 1979: 265, nota 140).

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